Carina Mendes
A mãe está no sofá da sala com o livro aberto e o filho passa em direção à cozinha.
─ Ah, mãe, de novo Borges?
─ Filho, esse autor é genial! Ele escreve vários contos que dão um nó cabeça da gente. Aliás, você precisa ler mais, já te falei isso.
O filho suspira revirando os olhos. A mãe fecha o livro se volta para ele:
─ Você não acha incrível a ideia de uma biblioteca infinita, que contenha todos os livros do universo? Todas as combinações possíveis usando as letras do alfabeto, o espaço, o ponto e a vírgula. Imagina só! ─ A mãe começa a gesticular para ajudar na compreensão. ─ Salas em hexágonos com estantes em 4 lados, cada estante com 5 prateleiras, cada prateleira com 32 livros. Os dois outros lados se ligam a outros hexágonos laterais, e poços de ventilação no centro ligam estas salas a outros hexágonos acima e abaixo, que repetem a mesma matemática infinita.
─ Ah, mãe, isso é impossível. Até parece. Uma biblioteca infinita? Credo. Já basta a quantidade de livros aqui em casa. E afinal de contas, já existe o Google, né? ─ O filho sorri como se tivesse ganhado o debate.
─ E se houvesse um só? Um livro com páginas infinitas, com uma numeração aleatória, ao lado da página 5.340 está a página 93? O livro de areia, sem início nem fim.
─ Ah, daí ficaria mais fácil mesmo. De repente, eu até leria.
A mãe segue no propósito:
─ Tá bem, e o que acha de um sonho dentro de outro sonho? Uma pessoa que sonha que está criando outra pessoa, que sonha estar criando outra pessoa e que ao final percebe que ela mesma é a criação de alguém, isto é, percebe que está sendo sonhada? ─ Os olhos da mãe brilham.
─ É... até que é legal, mas irreal, né? Como uma pessoa no sonho pode sonhar que está sonhando outra? E mais, achar que está sendo sonhada? Fala sério, mãe.
─ Tá, filho, por isso que é uma literatura fantástica. Não é pra ser real, é pra abrir nossa mente, nos fazer refletir sobre as coisas, as possibilidades e impossibilidades do mundo.
─ Aham. ─ O filho vira a rosto e vai dando passos disfarçados em direção à porta da cozinha. A mãe interrompe:
─ Escuta essa então! E se o seu “eu” mais velho pudesse voltar no tempo e conversar com seu “eu” mais jovem? Pensa só! Tem um conto que é assim. Num banco de frente para um rio, o Borges de 20 e tantos anos conversa com o Borges de 70 e tantos. Um está em Genebra e o outro em Cambridge. Mesmo banco, em dois lugares e dois tempos diferentes. Não é demais?
─ Igual acontece em Dark?
─ Dark?
─ Sim, aquela série alemã do Netflix. Vários personagens conversam com suas versões mais jovens ou mais velhas ao longo da série. Tem uma máquina do tempo que permite a viagem e tal.
─ Ah tá... Tipo isso... Ainda sobre o tempo, tem outro conto superinteressante, onde um homem prestes a ser executado, pede a Deus um ano para terminar sua grande obra literária. Deus concede. Daí, no momento em que os soldados levantam as armas para o seu fuzilamento, o tempo congela. – A mãe volta a gesticular. ─ Uma gota de chuva em seu rosto, a sombra de uma abelha, o braço do sargento que daria a ordem, tudo para. Este momento paralisado, que para o preso corresponde a um ano inteiro, no tempo do relógio corresponde a somente dois minutos. Não é...
─ Mãe?
─ ... incrível imaginar um ano contido num espaço de dois minutos? Será que o tempo da mente, ou do sonho, é diferente do tempo da vida real?
─ Mãe? ─ diz o filho já na porta da cozinha, olhos arregalados, desconectado da conversa.
─ O que foi, rapaz?
─ É que o relógio da cozinha tá andando pra trás.
A mãe se calou, matutou por alguns segundos, estreitou o olhar e então levantou uma das sobrancelhas como se houvesse solucionado um mistério:
─ Rá! Um clássico borgiano, a história contada ao contrário, a partir de seu fim. No início do conto já sabemos a solução do mistério. Já pensou, filho, que irado!? Filho? Filho?