Carina Mendes
Na poltrona de leitura, Alice toma seu chá, observando a chuva pela porta de vidro. Duas semanas e ainda não tinha sido agraciada em ver aquela paisagem através de um véu d’água. Os dias no chalé estavam sendo fundamentais para colocar a cabeça no lugar.
Conforme Alice leva a xícara à boca, a chuva parece se intensificar. O olhar distraído vaga pela vegetação, até que distingue uma criatura na varanda, de frente para a porta. Ela se levanta de sobressalto, derrama um pouco de chá no piso e permanece imóvel, xícara na mão. Sua visão periférica indica que há outra no batente da janela, mas do lado de fora, amém. Sente o pescoço rijo, como se um torcicolo a impedisse de girar a cabeça.
Dá passos para trás, ainda sem plano, aliviada pelo isolamento permitido pelas vidraças e telas mosquiteiro. Apoia a xícara na bancada que separa a cozinha da sala, procura desviar o olhar. Entretanto, percebe mais três na janela dos fundos. Arregala os olhos, e da boca sai um grito mudo, próprio de quem se sabe sozinha. Então estufa o peito, inspira, como se recolhesse todo o ar do seu entorno, e se dirige em passos cautelosos até a despensa, um ambiente sem janelas.
Solta o ar aliviada e aciona o interruptor. Com um piscar lento, deixa a cabeça pender. Passa as mãos no rosto e abre os olhos. No canto, avista um ser dividindo o mesmo espaço, sem vidros ou telas. No ímpeto, abre a porta e sai afobada. Pega a bolsa no cabideiro e a chave do carro sobre a mesa. Conta até três somente com o movimento dos lábios e abre a porta principal.
Corre, corre muito, sem olhar pra trás, como se a velocidade fosse capaz de evitar qualquer contato, e pega a estrada de terra. A chuva e o vento embaçam a visão, a lama dificulta a estabilidade. Alguns metros de corrida e percebe que estão agora caindo do céu. Sente um deles resvalar em seu ombro. Acelera. Tenta desviar dos que estão no chão, pula, e agora grita, alto, para espantar as criaturas.
Avista o carro e se permite um suspiro de alívio. Na reta final, olha seus inimigos com um certo desdém, como se estivesse ganhando o jogo. Ainda em movimento, passa as mãos pelos bolsos da calça procurando as chaves. Fuça dentro da bolsa, sacudindo-a com fúria, se dando conta de todos os itens inúteis que estão nela. De frente para a porta, joga tudo no chão, na água, na lama.
Então ela vê, enorme, diante dela. Imóvel, Alice desiste. A criatura a engole de uma só vez.