As vacas


Carina Mendes

Café da manhã, Luciano levantou os olhos do celular em minha direção e, com ar de espanto, disse:

─ Amor, eu fiz uma viagem astral essa noite!

Eu, uma cética convicta, desconfiada de todas essas coisas imateriais do universo, tentei controlar minha expressão facial, forjando um ar de curiosidade que encobria uma vontade de sorrir.

─ Sério, amor, me conta mais sobre isso. Que interessante.

Ele, com olhos excitados, explicou que sonhara, na noite anterior, que estava no sítio e que vira vacas pastando na sua plantação. As vacas olhavam para ele e ele para as vacas, numa espécie de comunicação telepática, como se estivessem querendo lhe dizer algo. E que, agora pela manhã, Luiz, seu encarregado, lhe dissera que chegando no sítio encontrou vacas na plantação.

─ Foi viagem astral, amor. Sinistro! Eu estive lá essa noite e olhei as vacas. Se Luiz estivesse lá ainda antes do sol raiar eu teria visto ele também.

─ Nossa, amor, sinistro.

─ Você não acredita em nada mesmo, né Carina, deixa pra lá.

Findo o café, Luciano passou o dia todo envolvido com o assunto. Entre uma tarefa e outra do trabalho, viu vídeos na internet, leu blogs, sites, conversou com amigos, grupos de WhatsApp. Aprofundou seus conhecimentos sobre projeção astral, técnicas conscientes, prós e contras, e.q.m, meditação, a vida no universo e fora dele, outros universos e universos paralelos. Já eu, trabalhei como de costume, lidando com processos, reuniões e telefonemas.

À noite, quando nos deitamos novamente, ele, como de praxe, pegou o celular para conferir as últimas notícias do dia e eu, após minha leitura de duas páginas, apaguei a luz para dormir.

Rolei pra um lado, rolei pro outro, repassei as tarefas que fiz no dia, as que precisava fazer no dia seguinte, na próxima semana. Revirei, bebi água, senti o ar gelado, puxei a coberta, percebi o travesseiro baixo, senti que esquentou, tirei parte da coberta, senti o ar seco, bebi água, percebi o travesseiro alto, uma claridade, um barulho na rua, deu fome, revirei...

Abri os olhos exausta e vi Luciano ao lado, pleno, dormindo, roncando. Ao observar esse contraste, pela primeira vez vislumbrei a explicação para nossas diferenças de padrão de sono. Certamente o espírito dele já saiu pra passear por aí, e a essas horas já deve estar lá no sítio. Com as vacas.

voltar

Carina Mendes

E-mail: mendes.carina@gmail.com

Clique aqui para seguir este escritor


Site desenvolvido pela Editora Metamorfose