Sutilezas


Carina Mendes

“Tudo que você ama, você eventualmente perderá, mas, no fim, o amor retornará em uma forma diferente.” Franz Kafka

Tive que te matar muitas vezes, alguma hora teria que ser a última. No fundo eu sempre soube, só não queria admitir. A frase dita funcionou como uma epifania, escancarando a verdade sobre nós. Eu te amava, agora tenho isso claro. Queria que tivéssemos um caminho juntos, algo além das quatro paredes. Passear pelas ruas do bairro, sentar num café ao final da tarde para falar dos assuntos do dia, ir ao cinema nos finais de semana, comer pipoca e voltar para o mesmo apartamento. Essas sutilezas.

Ao invés disso, na ânsia de ter você, contentei-me com bem menos. O que havia de mal nas quatro paredes? Nada. Era o nosso pequeno universo, momento em que éramos nós, na essência, nus e crus. Tempo cronometrado, toques, prazeres ─ fugazes e intensos ─, às vezes nem tão intensos, às vezes inconclusos. Naquele momento você era meu, só meu, e eu chegava a fantasiar que poderia surgir um laço de ternura que nos atasse de vez.

Em alguns períodos você demorava a aparecer. Nascimento do segundo filho, esposa demandando atenção, mudanças repentinas, muito trabalho. Eu ficava ali, nos interstícios, nas entrelinhas, apagada, esquecida. Nunca soube os motivos pelos quais tornava a me procurar. Tédio talvez, a vida repetida, a ausência de emoção ou de aventura. Nesses momentos eu sempre estava lá te esperando, aguardando a mensagem na tela do celular. O meu “sim” era uma certeza.

Então na última vez, ao ir me encontrar, levou um buquê de rosas, rosa, de pétalas tão macias que pareciam sussurrar: “te amo”. Senti um calafrio, um bambear nas pernas. Foi a única vez em que ousamos um encontro ao ar livre. Tive a sensação de que toda a minha vida havia sido escrita para chegar naquele momento, eu, você, o mar e um buquê de rosas que sinalizava a bifurcação de nossa trama. Enganamos a todos com nosso relacionamento forjado de desinteresse e daquele momento em diante seguiríamos juntos, o tempo todo, de mãos dadas. Cheios de sutilezas.

─ Gilberto, elas são lindas! Não esperava...

─ Ah, não, querida. São para Érica, é que você resolveu marcar em um lugar diferente, não tive tempo de passar em casa. E afinal, a gente não é dado a essas sutilezas, né?

A última frase me atingiu em cheio. Me soou fora da frequência, aguda, rachou algo no meu interior, desvelando o que eu não quisera ver até aquele momento. Passei a entender quem eu era, quem você era, a nossa matéria bruta. No teatro da vida, nossos papéis já estavam fixados desde o começo, desde o nosso primeiro encontro quando trocamos olhares embaçados na fumaça de uma boate, embriagados, você escapando das demandas de casa e eu de mim mesma.

Depois disso, eu não queria mais te ver, quer dizer, queria, mas não podia. Sobrevivência, sabe? Também não achei importante te explicar. Nada de sutileza entre nós, certo? Tive que te exterminar para o meu próprio bem, te afogar no mar do meu desencanto, deixar que as ondas te arrastassem de volta para a sua vida e me empurrassem para uma outra. Para renascermos diferentes.

Fico feliz em ver que está bem agora, aqui, neste gramado, entre árvores. Érica soube escolher um bom lugar para seu repouso. Aproveito então para te deixar uma rosa, rosa. Uma pequena sutileza, ainda que não sejamos dados a ela.

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Carina Mendes

E-mail: mendes.carina@gmail.com

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