Carina Mendes
Passo pela porta de vidro e vou direto para o balcão:
— Preciso de um atendimento de emergência, meu ouvido está me matando.
— Ok, senhora, a carteirinha do plano de saúde e a identidade, por favor.
Abro a bolsa, a carteira e entrego os documentos solicitados. A atendente mexe no computador, pega o telefone com ar de desinteresse, imprime uns papéis, me dá parte deles para assinar, os pega de volta, carimba sei o que lá, troca umas palavras com a fulana do lado, dá mais alguns toques no teclado, desliga o telefone, devolve meus documentos e diz:
— Agora é só esperar ser chamada.
— Tem como dar prioridade? Estou com uma dor lancinante.
— É só aguardar, senhora.
Conformada e obediente, me sento. Ouço um zumbido agudo que parece dessintonizar a alma, levo a mão ao ouvido em formato de concha, pressiono, tentando dissipar a dor. Sinto uma estabilidade momentânea, uma frequência contínua, preciso me distrair. Abro a bolsa. Mexo, remexo, jogo os papéis de um lado para o outro, não é possível. Afasto a carteira, as chaves, a necessaire, o álcool em gel, o estojo dos óculos e nada. Então tiro, um por um, os itens da bolsa e constato em voz alta: “Merda, esqueci o celular”. Todos me olham esquisito e peço desculpas só com o movimento dos lábios.
O relógio de ponteiros marca três e quinze. A quantidade de gente indica o tempo que vou passar ali, fazendo jus ao termo que especifica o objetivo da sala: espera. Noto, então, que não há aquela clássica televisão de catorze polegadas com algum programa de auditório sobre o nada que possa preencher o tempo e dissimular o zunido constante. Também não vejo nenhum revisteiro tosco com publicações do início dos anos dois mil, com suas capas surradas e bactérias vintage. Observo o meu entorno; todos estão com os olhos nos celulares e semblantes serenos.
Ouço um acento na dor, como se agora uma agulha me perfurasse o ouvido, encosto minha cabeça na parede, as pálpebras pesam.
— Senhor Joaquim, pode entrar — diz a atendente mais alto que o necessário.
Pouso a mão no ouvido, as pálpebras se erguem. O senhor de ar bonachão se levanta, guarda o celular e se dirige à porta. Não vejo sinal de sua agonia, o que será que tem? Otorrinolaringologia, deve ser algo no nariz, está entupido, um leve desconforto, mas nada que justifique sua presença na emergência. Esse pessoal não tem mais o que fazer na vida e vem passear nas clínicas; devia ao menos deixar seu celular comigo. Todos com os olhos nas telas e eu como um alienígena, ou uma alienígena, será que essa palavra tem feminino? Esse zumbido bem poderia ser o som do interior de uma nave espacial mesmo. Outra pontada, agudíssima, abaixo a cabeça tendendo a apoiá-la nos joelhos.
— Senhora Ruth, pode entrar.
Mais uma felizarda. Levanto a cabeça como se erguesse uma bigorna. Dona Ruth guarda o celular e segue para a porta da esperança. Só pode ser na garganta seu problema, deve ter falado demais e emudeceu. Resolveu vir para a emergência. Podia ter marcado um médico de consultório, aguardado uns dias ou umas semaninhas e aproveitado o tempo de silêncio para meditar. Dá para conviver com o silêncio, o que não dá é para ficar com um zunido no ouvido que impede você de dormir, trabalhar, andar por aí. Inviabiliza a vida, nesse caso é justificável a vinda para uma e-m-e-r-g-ê-n-c-i-a. Vejam que o distúrbio é tão grande que esqueci até o celular. Quem, em plena consciência, hoje, com os ouvidos funcionando plenamente, esquece esse objeto indispensável a uma sala de espera? Ainda mais em uma em que aboliram televisões e revisteiros.
— Senhorita Isabela, pode entrar.
— Mamãe, mamãe, chegou a nossa vez.
A mãe guarda o celular da menina e o dela, e ambas caminham para a porta da felicidade. Isabela saltita, o que denuncia a falta de gravidade de sua dor. Não devia ter nada para distrair a pirralha em casa e a mãe resolveu trazer a criatura para uma emergência qualquer, programa que libera a consciência materna da culpa por deixar a criança no celular.
Paro de ouvir os sons do ambiente. Fico oca, moca, vazia. Pendo a cabeça para o lado do ouvido doente, tentando aliviar a dor, e é como se placas tectônicas tentassem se acomodar no interior. Parece escorrer uma gosma, coloco a mão e nada. Mantenho a palma abafando meu órgão combalido. Ninguém me nota, ninguém se compadece, todos os olhos nas telas. “Morreu de esperar” vai estar escrito na minha lápide. Uma pena perder uma mulher forte e saudável devido a uma dor de ouvido sem prioridade. Joaquim, Ruth e Isabela tinham mais urgência.
— Dona Clarisse, pode entrar. — Ouço ao longe, como um chamado dos céus, mas não reajo.
— Dona Clarisse? — diz a atendente com a mão no meu ombro. — Pode entrar.
Abro os olhos como quem desperta de um sono de séculos, mantenho minha mão no ouvido e me levanto já sem urgência. Todos ainda nos celulares. No relógio, três e meia.